Outorga onerosa em São José: um passo para o crescimento urbano ou uma abertura para interesses privados?

Imagine uma cidade em plena expansão, onde os prédios crescem para o alto, mas as regras do jogo urbanístico ainda respiram os ares da década de 80. Essa era a realidade de São José até muito recentemente. Com um Plano Diretor datado de 1985 — quando a cidade tinha cerca de 80 mil habitantes — a administração municipal finalmente atualizou a norma urbanística central, já mirando um futuro com previsão de 600 mil moradores até 2045.

Mas a pergunta que fica é: a nova regulamentação, que entra em cena com o Decreto nº 22608/2025, representa de fato um avanço para a cidade ou abre espaço para um tipo de “licença para lucrar” mediante pagamento?

O QUE É OUTORGA ONEROSA — E POR QUE AGORA?

No centro da atualização está a implementação da outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso, mecanismo previsto em lei federal que permite aos empreendedores excederem os limites de construção estipulados pelo zoneamento urbano, desde que ofereçam uma contrapartida ao município.

Na prática, funciona assim: se um investidor deseja construir acima do coeficiente permitido — ou seja, ocupar mais terreno ou construir mais andares do que o básico definido por lei — ele pode solicitar essa “liberação” mediante um pagamento, ou realizando obras de interesse coletivo.

É válido lembrar que, com o novo Plano Diretor, o território de São José foi reordenado e novas regras de ocupação do solo e uso das edificações passaram a valer. Entre os destaques está o limite de 25 pavimentos em certas vias, além de restrições quanto à área máxima de ocupação dos terrenos.

Tudo isso embasado na Lei Complementar nº 173/2024, que institui os parâmetros atuais para ocupação urbana.

PAGOU, LEVOU? COMO FUNCIONA A COMPENSAÇÃO

O investidor que quiser extrapolar os limites construtivos pode optar por pagar ao município um valor correspondente a 5% do Custo Unitário Básico (CUB) — índice calculado pelo Sindicato da Indústria da Construção Civil de Florianópolis (Sinduscon). Mas também pode oferecer contrapartidas em forma de infraestrutura: calçadas, praças, iluminação pública, entre outras melhorias.

Esses recursos vão direto para o Fundo de Urbanismo e Serviços Públicos, e têm destinação específica: programas de habitação social, qualificação da mobilidade urbana, obras públicas e implantação de equipamentos comunitários. Pelo menos, é o que diz o papel.

No entanto, há uma pergunta incômoda que ecoa entre urbanistas e parte da sociedade civil: estamos falando de um instrumento de justiça urbana ou de um simples “pedágio legalizado” para o crescimento vertical?

UM INSTRUMENTO QUE PRECISA DE VIGILÂNCIA

De acordo com o secretário adjunto da Susp, Michael Rosanelli, o objetivo da outorga onerosa é “equilibrar a ocupação do solo urbano, otimizar a infraestrutura existente e proteger o meio ambiente de São José”. A fala é coerente com os princípios do planejamento urbano moderno, mas deixa margem para reflexão: quem fiscaliza se as contrapartidas realmente cumprem esses objetivos?

A regulamentação prevê que uma comissão da Prefeitura será responsável por analisar cada solicitação de outorga. Esse grupo terá que julgar se a proposta apresentada atende às reais necessidades da população, incluindo impactos na mobilidade, pressão sobre os serviços públicos e criação de áreas de lazer.

Mas será que esse modelo de análise é suficientemente transparente e participativo? O temor de que interesses privados prevaleçam sobre o bem coletivo não pode ser ignorado.

SEGURANÇA JURÍDICA OU LIBERAÇÃO CONTROLADA?

Para o vice-prefeito e secretário de Urbanismo e Serviços Públicos, Michel Schlemper, o principal ganho com o novo Plano Diretor é a previsibilidade:

“Um dos maiores avanços que conquistamos com esse novo Plano Diretor é a segurança jurídica. Ao oferecer regras claras e atualizadas, alinhadas com a realidade atual da cidade, damos mais previsibilidade a quem quer empreender e investir em São José. Isso fortalece a confiança no município e impulsiona o nosso desenvolvimento de forma planejada e sustentável”, destacou.

Do ponto de vista institucional, a fala é positiva. No entanto, o discurso da segurança jurídica pode acabar servindo como escudo para a flexibilização de regras em nome da expansão imobiliária. A pergunta é: o que está sendo priorizado — o direito à cidade ou o direito de construir?

TRANSPARÊNCIA E PARTICIPAÇÃO: O CALCANHAR DE AQUILES

Outro ponto sensível é o acesso à informação. Embora o site da Prefeitura de São José disponibilize o conteúdo completo do Plano Diretor e das leis complementares — veja aqui: https://saojose.sc.gov.br/plano-diretor-participativo —, é fundamental que o conteúdo seja apresentado de forma acessível à população.

Afinal, quantos cidadãos comuns conseguem interpretar termos como “coeficiente de aproveitamento”, “instrumento de outorga onerosa” ou “LC nº 173/2024”? Não seria papel do poder público garantir que a sociedade entenda os impactos diretos desse modelo sobre seu cotidiano?

E AGORA, SÃO JOSÉ?

O novo Plano Diretor de São José chega com a promessa de modernização, crescimento planejado e justiça urbana. A outorga onerosa, por sua vez, é apresentada como solução inteligente para financiar melhorias urbanas com recursos do próprio desenvolvimento imobiliário.

Mas o debate está longe de acabar. Afinal, trata-se de uma ferramenta que, se bem utilizada, pode democratizar o crescimento urbano — mas, se mal gerida, corre o risco de transformar a cidade em uma moeda de troca entre poder público e grandes empreendimentos.

Enquanto isso, resta à população, aos conselhos municipais e à sociedade civil organizada acompanhar de perto como essa regulamentação será aplicada na prática. Porque no fim das contas, não se trata apenas de construir mais. Trata-se de construir melhor — e para todos.



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